sábado, agosto 03, 2013

O que deixar para o mundo

O mundo é grande. O tempo é dimensão incerta. O espaço que possuo agora me permite escrever o que cravo nessas letras desengonçadas, entre as ideias encravadas e a criatividade plena, permito-me respirar um pouco antes de colocar em texto rosa como a prosa algo menos poético, menos preguiçoso, por assim dizer, pois o poeta escreve pouco querendo dizer muito depois de viver muito e falar pouco do que viveu, enquanto o romancista vive e escreve na mesma proporção.

Abstrato? Não é onde eu queria chegar. Onde quero chegar é onde todos iremos chegar. A morte. Eficaz. Sagaz. À espreita de todo ser vivente, seja ele a folha da árvore, prestes a se desprender, prestes a se mutilar de tão importante membro na sua produção do alimento. A árvore do outono dispensa no solo a sua necessidade de produzir o açúcar que a alimenta de seiva. E coloca no solo mais nutrientes, que as raízes irão absorver durante o inverno. Tudo isso para na primavera florescer, ciclo infinito de vida-amor-morte das plantas, como se quisessem nos dizer alguma coisa com suas vidas centenárias e imortalidade das sementes.

Somos ignorantes, de fato, diante de todos os propósitos da natureza. E estou falando apenas do nosso planeta, sem ainda considerar o que ignoramos do espaço, com seus planetas longínquos, nebulosas e galáxias distantes. Teoricamente estamos no começo do tubo do nosso universo, dentro dos diversos universos possíveis. Talvez possamos falar em 10 dimensões nas últimas teorias da Física. Dez já é demais, no nosso atual estado pouco podemos compreender da quarta dimensão, o tempo, que dirão das outras 6? A sutileza, afinal, a mesma que enobrece o galanteador e dá péssima moral ao canalha, a mesma sutileza que serve ao bem e ao mal, afinal, é a percepção capaz de notar a verdade nas entrelinhas, nos detalhes. Apenas com um grande conhecimento matemático o ser humano é capaz de conceber outras dimensões, pois elas não são perceptíveis aos seus cinco sentidos. E o tanto que o cara teve que estudar para chegar a isso não foi pouco, com certeza. Subiu no ombro de gigantes.

Deixar para o mundo é uma absoluta certeza. Todos deixaremos algo para o mundo. Desde saudades até ideias, livros, poemas, biografias, trabalhos, realizações, descobertas. Mas como escolher o que deixar? O eremita que desconhece o mundo, que não tem conexões, não deixa saudades, mas pode deixar versos que mudem a história da humanidade. A ideia, afinal, é como diamantes: pode ter muitos donos diferentes, mas continuar sendo valiosa. Você tendo a ideia certa, pode encontrar o que deixar para o mundo antes deixar o mundo.

O que você escolheria? Na antesala  do despreparo para a vida que todos enfrentamos, talvez haja lições importantes no preparo para a morte. A morte é solidária: tem para todos. O que importa é o que você vai deixar vivo. E se você deixar vivo o tanto de amor que você tem pelo mundo, o tanto de certeza que há pelo que vem a ser o universo, um tanto de verso perdido, de poesia perdida, de texto transgressor, de histórias de fracassos e sucessos. Deixe para o mundo o tanto de humano que você é e o mundo agradecerá pelo exemplo do que se pode vir a ser.

O autor desse texto escolheu apenas escrevê-lo para você, com a intenção de provocar um medo mórbido, quase ritual, daqueles que os primeiros homens enfrentavam quando iriam caçar animais selvagens, dispondo para tal tarefas de primitivas ferramentas e de um grande sentimento de cagaço protetor. O que deixo para você é um pouco daquele medo antigo, daquele temor desmedido, daquilo que nos faz sentir mais vivos, dos tiros de adrenalina na supra-renal para deixar a espinha reta, pronta para enfrentar uma guerra, se possível. A vida precisa do dever e o dever se faz pela sensação de necessidade de se fazer alguma coisa. Não se faz nada sentado no sofá toda hora. Às vezes é preciso ir para as ruas. Às vezes é preciso votar melhor numa eleição. Às vezes é preciso se candidatar, dar a cândida cara a tapa, ser a vitrine absolutamente preparada para receber as pedras. Quem nunca foi pedra bruta que atire a primeira bruta pedra e, se for assim, ninguém atirará pedra alguma e as construções poderão ser feitas.

Deixar para o mundo consiste em construir. Acima de tudo, construir no seu interior um ambiente em que você possa conviver com você mesmo, sem a necessidade de ficar toda hora se evitando, como se as suas próprias verdades incomodassem as suas próprias mentiras. Assim que você quebra a barreira de mentiras conhecendo melhor a si mesmo, o próximo passo é construir o que você deseja, até ter o que deseja. E quando tiver o que deseja, agradeça. Após agradecer e deixar de desejar aquilo que conquistou, compartilhe. E assim os ciclos vão se fechando e você terá deixado para o mundo um pouco de si.

Se quiser deixar mais, não se esqueça de escrever um livro, plantar uma árvore, criar um bicho, escrever poemas, viver, amar, deitar no chão e olhar para as nuvens para sentir o planeta rodar, entender as estrelas e usá-las para se guiar, e assim por diante. Tome decisões na vida que permitam que você continue conseguindo conviver consigo mesmo. Evite as mentiras e a busca eterna por um prazer atrás do outro, sem gratidão. Todos os caminhos com certeza levam a morte -- alguns mais rápidos do que outros -- mas o mais importante é deixar para o mundo uma história de paixão e gratidão do que de meras paixões irreconciliáveis.

O que você ganha com isso? Se você começar você vai perceber que não é apenas ser uma pessoa carismática, mas sim ter uma consciência ampliada em relação aos homens, à natureza e ao universo. Uma forma de entender isso é justamente olhar para o céu e ver o quanto somos menores do que um grão de areia. O que interessa é onde vamos aportar essa areia, se no mar da perfeição, ou na praia da loucura. De qualquer jeito o que resta é a morte, mas o que você vai deixar vivo? Você mesmo. E quando deixar-se, lembre-se de amar-se. Ao amar-se ao deixar-se terá certeza de que a sua vida não foi uma farsa. As farsas estão condenadas a se repetir na História, assim como as tragédias. Já a alegria, a felicidade, infelizmente essa não se repete. Mas se você puder ser feliz, compartilhar essa felicidade e repeti-la, então a sua vida terá valido a pena e você terá deixado para o mundo sementes de felicidade que deverão florescer em alguma primavera.